Há uns quinze anos atrás, uma moça me parou na saída da Penn Station, em Nova Iorque, com um objetivo até então (a mim) inédito. Discursou um pouco sobre lixo e consumo, estimou quantos quilos de lixo plástico eu sozinho produziria por ano, citou algumas projeções chocantes e verídicas sobre o impacto disso no planeta. Ao fim, deixou duas mensagens. A primeira foi bem específica e concreta: que eu evitasse sacos plásticos quando fizesse compras. A segunda foi mais subjetiva e de apelo mais espiritual, ou mais materialmente ambiciosa, diria, pois pregava alteração mais profunda em meu padrão de consumo. Era a mesma mensagem que os hippies e os monges já passavam: desapegue.
Desapego é um exercício fundamental na vida, penso eu. O objetivo é nos descolarmos de nossas necessidades sociais e materiais, no sentido de que elas são algo que temos e não o que somos, e, se são apenas algo que temos, podermos nos livrar delas caso não estejam ajudando. Não conheço método concreto mais eficiente para conseguir isso do que a meditação. Nela, você realmente descola sua identidade consciente (mente) dos impulsos neurais que a habitam (na verdade habitam o cérebro), graças ao liga-desliga contínuo desses impulsos de forma a torná-los evidentes, ou evidentemente visitantes no plano consciente. É verdade que já se sabe da diferença entre mente e cérebro, e que os padrões inconscientes do cérebro são as verdadeiras presas do consumo. Mas se a mente é o acesso à gestão do cérebro sobre ele mesmo e todo o corpo, é fácil entender por que a meditação funciona. Desapego é consequência inevitável do exercício, mas o exercício é íntimo, pessoal e intransferível. Podemos influenciar terceiros para que queiram entrar por esta porta, mas eles só entrarão sozinhos, pelas próprias pernas.
É por isso que não devíamos perder tempo promovendo o desapego. É algo que se pratica, não se prega. Como com o amor, a raiva ou qualquer sentimento, somos capazes de contaminar os outros somente se estivermos contaminados. Explicações são inúteis, mesmo se bem entendidas, pois o processo real é bioquímico. Para economistas, idealistas, empreendedores ou governos preocupados com o impacto da corrida armamentista do consumo no meio ambiente e qualidade de vida futura, há outro processo coletivo mais eficiente a promover. É no campo onde de fato nos relacionamos, o campo material, e não precisa que tentemos hackear a mente de ninguém. É a desmaterialização.
Desmaterialização é fazer muitos quilos de matéria caberem num espaço pequeno ou quase nulo. É o smart phone conectado a web, um pequeno aparelho graças ao qual deixou-se de fabricar uma câmera fotográfica, um gravador de voz, um relógio, uma bússola ou GPS, um mapa, um ou centenas de dicionários e enciclopédias, tradutor de voz, monitor, video game e mil outras coisas. Mais recentemente, até equipamentos médicos estão no smart phone. Tudo isso exigiria, na tecnologia de décadas atrás, a fabricação de dezenas de equipamentos específicos para atender a mesma demanda. Desmaterialização é a substituição de um hardware por um software, mas é também mais que isso.
Economistas falam em ativos concorrentes e ativos não-concorrentes. Pense na construção de um prédio. O terreno, o material usado e a mão de obra, tudo isso são ativos concorrentes, pois se empregados aí deixam de ser empregados em outro projeto (se o terreno vira um prédio, o mesmo terreno não pode virar um clube). Mas o conhecimento usado na construção pode simultaneamente ser usado em qualquer outro lugar, por quaisquer outras pessoas. Conhecimento é um ativo não-concorrente, e é também o ativo que mais gera empregos e desenvolvimento hoje, já que a ordem é destruir menos e, mais que isso, fazermos o desenvolvimento chegar a quem antes não conseguia pagar por ele. É natural também que conhecimento e tecnologia nos levassem em algum momento a um ápice da destruição dos recursos naturais, mas ao que parece esse momento já passou.
Bio e nanotecnologia já criam serviços e produtos a nível molecular, com potencial de eliminar por completo lixo e poluição. Algumas das tecnologias mais modernas do planeta já chegam até os pontos mais remotos, sem fios, material físico ou cadeia de comando centralizada, reduzindo o impacto ambiental e aumentando o bem estar de qualquer consumidor. E é só o começo.
Antropoceno é o nome do período histórico em que as ações do Homem começaram a ter impacto significativo nas dinâmicas da natureza e do planeta em si. Não há consenso sobre quando exatamente essa era começou, nem em que fase estamos nela. Mas há indícios que tenhamos terminado sua infância. As crianças só superam a exploração de um bom brinquedo pela exaustão da brincadeira. A desmaterialização é causa e consequência de maturidade econômica, e reduzirá radicalmente o impacto ambiental de nossas ações. Sua percepção cultural vem a reboque, também posteriormente tornando-se outra causa: houve um tempo em que obesidade era vista como sinal de saúde abundante, e ainda estamos nessa fase no caso dos bens de consumo. Só que não foi o desapego quem matou as vendas daqueles gigantes 5-CD/k7/radio players, e sim o iPod Nano.
Quinze anos após aquele sermão na Penn Station, muita coisa já aconteceu. A meditação, que na época eu não admirava pois soava como coisa de hippie ou maluco, é praticada hoje pelas pessoas mais bem sucedidas do mundo, e por pobre homens como eu, diariamente. Algum desapego já veio. Mas embora pareça que sim, ela não é capaz de trazer desenvolvimento social (basta olhar a India), apenas conforto individual. O meio ambiente será salvo pela desmaterialização. Minha mochila hoje é menor.
Sobre sacos de plástico em supermercados, já os recusava antes daquele dia, e continuo até hoje fazendo. Mas, se lembro bem, agradeci à moça pela lembrança.
Bruno Pesca é menor que tudo isso.
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