Revanche é a melhor palavra
I contain multitudes é um dos destaques do último disco de Bob Dylan. Todos nós contemos, inclusive os famosos. E juízos que fazemos sobre personagens históricos são acima de tudo derivados de narrativas coletivas circunstanciais de época, a tônica vigente. Aprendi isso em conversa com um embaixador brasileiro, já falecido. Como exemplo, ele citou o emprego do termo terrorista. “No palco principal, a expressão veio pelo 9/11 e depois se popularizou, por conveniência”, disse. “Quando F. Ferdinando foi assassinado, ninguém escreveu que um terrorista matou o arquiduque.” Personagens idênticos recebem rótulos diferentes em eras diferentes. “A tônica muda”.
Sempre muito me aborreceu a narrativa vendida pelos financistas brasileiros a minha geração sobre os heróis de nosso empresariado recente, em particular no relativo a uma clara contraposição moral, ao estilo Disney, de seus dois expoentes mor, Jorge Paulo Lemann e Eike Batista. O primeiro, com o bico calado e através de seus súditos em influentes ramificações sucessórias, apropriou-se de qualquer virtude universal do capitalismo. Ao segundo, o papel de vilão. Por seu rastro pessoal barulhento e facetas peculiares de gostos polêmicos, foi ridicularizado, conforme tipicamente nasce a coletiva e inconsciente agenda de cancelamento de outliers.
No livro How To Judge People by What They Look Like, o antropólogo Edward Dutton discorre sobre como a máxima de que não se pode julgar pessoas por aparência é uma falácia. Há boas razões biológicas para que estereótipos corretamente revelem inteligência ou personalidade e, em consequência, boas razões para que nosso senso crítico seja altamente sensível ao estereótipo alheio. Entretanto, há dois problemas. O primeiro é que, como toda intuição, o processo é falível. O segundo, relativo ao primeiro, é a complexidade das sociedades modernas, onde há sempre uma sobreposição de estereótipos dos personagens famosos, sendo alguns deles inevitavelmente falsos.
Aqui vai um estereótipo: por conta de taxas de juros perversas, a elite financeira brasileira não completou até hoje seu percurso cultural coletivo óbvio rumo ao desenvolvimento. Se há menos de um século atrás os bebês vencedores da loteria do CEP eram tipicamente filhos de servidores públicos, nos mesmos CEPs hoje nascem filhos de alocadores de poupança e de analistas, como os da Americanas. O Brasil deve ter o maior número per capita de analistas econômicos do planeta. Daí que enquanto o Elon Musk explica que movimentos ousados de empreendedores não são escolhas, mas sim a total falta delas – para quem obedece a um chamado do inconsciente – somos incapazes desta compreensão, por termos DNA de rentistas.
Nesse sentido, Lemann assinou um conveniente pacto com gerações de garotos de famílias ricas, mão de obra típica da industria financeira que é, como dizem eles mesmos (e já dizia o servidor público), o melhor emprego do mundo. De um lado, o ícone ofereceu um álibi existencial necessário aos jovens: apesar de ser a elite mais capaz, seu papel é apenas selecionar, apoiar bons empreendedores (novamente, já dizia o servidor). Por outro, definou que ele mesmo seria, num capitalismo eficiente, o paradigma para tanto. Um empresário cervejeiro que jamais gostou de cerveja.
Seu papel foi indiscutivelmente positivo na modernização do capitalismo brasileiro, no século passado. Mais do que positivo, foi transformacional. Errada está sua claque, que transformou em religião atemporal soberana um sistema cultural transitório, perspicaz para aquela conjuntura. E assim se explicaria a longeva impunidade da Americanas perante o mercado. Súditos religiosos não consideram hipóteses de falhas de seus santos.
Por alguma razão, Lemann sempre me lembrou Thomas Jefferson. Este escreveu a carta de independência, inaugurando o ideário estadunidense de liberdade, sendo considerado até hoje – com justiça – o pai de tal cultura. Em sua própria vida, entretanto, escolheu seguir como escravocrata mesmo após seu entorno evoluir no assunto. Analogamente, Lemann evoluiu a cultura do colarinho branco e transformou diversas vidas de alto escalão. Claro que os mais pobres, no agregado, só ganharam com isso, ao menos em tese. Mas ninguém sentiu ou sabe de fato, nem poderia saber. Embora a Ambev fosse uma seita entre seus executivos, nem o consumidor nem o entregador de garrafas, tipicamente, jamais tiveram amor pela empresa, tenho a impressão, como acontecia por exemplo, sei lá, com clientes e empregados da Varig. Justo lembrar que a Varig comprou amor de seu staff via populismo corporativo, o mesmo que eventualmente a matou. Mas exatamente este seria o ponto: no mundo antigo, o mundo de Lemann, tal dicotomia é definitiva.
No mundo atual da Apple, Patagonia, Tesla, etc, nunca existiu o falso dilema, assim como nunca houve aparente preocupação de Lemann em tal questão. Mesmo no auge dos anos 90, seu rastro já retratava valores ultrapassados, como o paradoxo de Jefferson.
O paradoxo de Eike seria o inverso. A despeito de qualquer estereótipo midiático, declarações de foro pessoal ou padrão real de comportamento dele mesmo, sua obra X apontou exclusivamente ao futuro. Mesmo focado em infraestrutura e não em consumo, ignorava não somente o passado como também o próprio presente inercial. Como exemplos, o gas to wire, que segue com a Eneva, e surreal capital fixo que é o Porto do Açú, hoje da Prumo, ligado a Minas Gerais por um duto subterrâneo e considerado em muitos quesitos um dos mais incríveis do planeta (pergunte não na Faria Lima mas em Cingapura, a quem realmente entende de portos).
Em paralelo, analistas de mercado validaram para a opinião pública a noção de que sua conduta fora, em retrospecto, sempre suspeita. Afinal, atrair e quebrar os próprios fornecedores sempre foi prática saudável do jogo, mas vender a mineradores concorrentes ativos por preços maiores do que valem é antiético, certo? Seu pecado mortal no mercado: IPOs pré operacionais para além da mineração, e SPACs não eram moda. Quando derrocou, foi criticado não por apostar dinheiro de investidores (e seu patrimônio próprio) em poços sem indícios reais petróleo (após perder os verdadeiros), de fato aí como um Dom Quixote, mas pelo IPO.
Embora estereotipar seja natural, consequências podem ser nefastas, como bem sabe o Eike e conforme sentem na pele somente agora certos credores, ou jovens executivos em inicio de carreira. Vale lembrar que até em relação a poderes judiciários há uma penca de estudos mundo afora sobre nítidas distorções que o expediente intuitivo do estereótipo gera. Isso sem mencionar toscas agendas de alpinismo social de suas autoridades, como aconteceu com Bill Ackman ou é tema da série Billions.
Quando trabalhei para a EBX, senti muitas vezes um zumbido de colegas e conhecidos, analistas de mundo não necessariamente brilhantes, que fizeram carreira em instituições financeiras ou empresas da costela do Lemann. São tanto vítimas quanto originadores das distorções culturais que me repeliram da dita escola “meritocrática” na juventude. O zumbido alertava sobre minha inocência, e me atrapalhou. Como manter intacta sua auto confiança, se pessoas nas quais você confia tentam miná-la?
Apesar da razoável suposição que conselheiros não alcançam todas as travessuras de seus C-suits, é inegável também que estes sempre, tal como tanto se disse sobre quem, como eu, operou sob o guarda-chuva do Eike, necessariamente adaptam-se a cultura da casa em seu sistema de incentivos. Quem comprou a ALL refez balanço, e na Heinz a SEC multou. Ao mentir que tais precedentes foram erros auto declarados, o agora ex CEO da Americanas apelou `a fábula infantil e aristocrática, tema deste texto: “São capitalistas puro sangue, aos quais tenho orgulho em me associar.” Sempre preferi a premissa desconfiada de que capitalismo é necessariamente vira-lata, se nada mais é do que a integral de interesses humanos, em suas multitudes.
Tônicas mudam, o embaixador estava certo. Com uma grande fraude, envelheceu mal o complexo de superioridade moral de meus detratores, súditos dos 3Gs. Curioso é que dos poucos conhecidos pessoalmente ligados aos três notáveis, nunca vieram alfinetadas. Refiro-me aos súditos da massa, aqueles que pensam conhecer os personagens por dois ótimos livros: o chapa branca da Cristiane Correa, no caso do Lemann; e o agnóstico da Malu Gaspar, no caso do Eike.
“Revanche é a melhor palavra”, disse Bob Dylan ao explicar a origem de Like a rolling stone. Estava bastante no disco novo, pensando em minhas próprias multitudes e contradições. Devido aos acontecimentos recentes, porém, voltei a ouvir seu velho e maior sucesso. Que prazer!
Réplicas a este artigo são bem vindas, mas somente daqui há 180 dias.
—————-
Bruno Pesca never rode a chrome horse with his diplomat.
Deixe uma resposta